Salvação pela lei do coração



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Por André N. Fonseca

"Porque todos os que sem lei pecaram, sem lei também perecerão; e todos os que sob a lei pecaram, pela lei serão julgados. 2.13 Pois, diante de Deus, não são justos os que somente ouvem a lei, mas os que a praticam; estes serão justificados. 2.14 (Porque, quando os gentios, que não têm lei, praticam as coisas da lei por natureza, embora não tenham lei, tornam-se lei para si mesmos, 2.15 demonstrando que o que a lei exige está escrito no coração deles, tendo ainda o testemunho da sua consciência e dos seus pensamentos, que ora os acusam, ora os defendem)" Romanos 2:12-15

Um dia desses, conversava com um amigo sobre a impossibilidade de alguém, excluído do evangelho, encontrar salvação. Somente por meio de Cristo, com sua obra redentora, podemos encontrar o perdão de nossos pecados e a salvação. Observamos que é muito comum o emprego de Romanos 2:12-15 para defender a tese de que os povos ainda não alcançados pelo evangelho, por exemplo, obterão salvação obedecendo a lei de seus corações. Mas a pergunta que faço é a seguinte: Paulo está falando de salvação nesses versículos? Vamos analisar juntos o texto em seu contexto. Se você concordar com os meus argumentos, que julgo norteadores para a interpretação da carta de Paulo aos romanos, no fim, você facilmente perceberá que é impossível defender a tese de que há salvação para aqueles que ainda não foram alcançados pelo evangelho de cristo com base em Romanos 2.

Primeiro argumento – Em todas as suas cartas, Paulo deixa bem claro que ninguém será salvo pelas obras da lei. Na teologia paulina, lei e graça são impossíveis de reconciliar. Uma vez que entendemos que Paulo sempre ensinou que a salvação vem pela graça e não pela lei, seria estranho encontrar este mesmo Paulo defendendo a salvação pelas obras da lei em Romanos. Não tenho a imagem de um apóstolo bipolar. Entendo que Paulo desenvolveu uma teologia solida e coerente. Crendo que Paulo foi um dos homens divinamente inspirados para escrever a Palavra de Deus e também na inerrância bíblica, não posso admitir que Paulo tenha escrito coisa com coisa. Portanto, seja pelo aspecto humano ou espiritual, creio que a teologia paulina seja coerente, livre de dubiedade ou contradições. Se você vê alguma contradição, ela está apenas na sua interpretação. A Palavra é divinamente inspirada, por isso é perfeita! Nossa interpretação nunca é perfeita, muito menos inspirada! Mas isso não nos impede de buscar o mínimo de coerência na interpretação bíblica, de buscar a real intenção do autor ao escrever o texto bíblico.

Segundo argumento – Não é somente a teologia paulina que pode amarrar o contexto de interpretação de Romanos, mas toda a Escritura. Uma cosmovisão bíblica facilmente nos impedirá de tratar Romanos como uma defesa de Paulo da salvação por obras. Toda a lei foi entregue ao homem para que tivéssemos o “guia” do padrão moral divino. Sem o padrão moral definido, como haveria de ser julgado o pecado? Nunca foi objetivo da lei salvar o homem, mas somente acusar o homem de seu pecado. A promessa de uma bem-aventurança pelo cumprimento da lei sempre foi para este mundo. Quando foi que a lei garantiu alguma coisa com implicações para o mundo por vir através de sua obediência? Nunca! Toda promessa vinda da lei ficou restrita a este mundo. Se vocês obedecerem a esta lei, gozarão do melhor desta terra, seus dias serão prolongados nesta terra etc..

Você pode até citar: “Aquele que pecar, esse morrerá!” (Ezequiel 18:4). Não preciso nem dizer que a implicação aqui é: o fim de seus dias nesta terra. Não podemos interpretar esse “morrer” apenas no âmbito espiritual, porque a lei também previa a morte física como resultado da quebra de algumas leis (Êxodo 21:29, Levítico 20:27 e Deuteronômio 24:7 só para citar alguns exemplos). Sem falar que há alguns relatos na bíblica que não deixam dúvidas de que Deus mesmo tirou a vida de algumas pessoas por causa de algum pecado que cometeram (Gênesis 28:7, Levítico 10:1-2 e Atos 5:1-5). Ainda que haja alguma implicação soteriológica na morte física, essa morte não implica necessariamente perder a chance no mundo por vir. Vamos tomar o exemplo de Moisés. Ele pecou quando desobedeceu a ordem de Deus batendo na rocha para tirar água. A consequência de seu pecado foi sua morte antes que pudesse gozar da terra prometida. Contudo, não concluímos que Moisés perdera sua “salvação”, sua oportunidade de viver uma eternidade com Deus.

Podemos também encontrar nos evangelhos e nos escritos dos outros apóstolos o ensinamento de que a salvação vem por graça, por meio da fé; nunca pelas obras! (João 3:16-18; Atos 15:11, 18:27, 26:18; e Hebreus 11 tem como principal objetivo mostrar que ninguém alcançou nada por obras, mas por fé).

Terceiro argumento – A carta de Paulo aos Romanos é considerada como o tratado teológico de Paulo. E parece mesmo! Basta perlustrar as folhas de qualquer teologia sistemática para constatar que há praticamente uma citação de Romanos para qualquer uma das categorias sistematizadas da teologia. Há informações sobre os atributos divinos, sobre hamartiologia, pneumatologia, cristologia, soteriologia, missiologia etc.. Romanos é um tratado teológico suprassumo ultra concentrado em 16 capítulos. É possível diluir isso aí num pensamento aguado de nossa teologia de EBD e ter um oceano para beber para o resto da vida. O pastor David Martyn Lloyd-Jones é famoso por ter levado 10 anos para concluir sua pregação expositiva de Romanos. E há tanta informação em Romanos que podemos facilmente perder o rumo do raciocínio do autor. Quando isso acontece, começamos a injetar informações no texto. Isso é fazer eisegese, e devemos buscar a exegese; isto é, retirar informação do texto, não o contrário. Quando injetamos informação no texto, a interpretação será a intenção do leitor. Se a correta interpretação é a busca pela real intenção do autor, devemos tirar informação do texto. Quando digo “tirar informação do texto” refiro-me à extração das intenções do autor como quem garimpa a terra em busca de ouro. “Tirar informação” do texto significa extrai do texto as intenções do autor. “Extrair” não com a acepção de eliminar ou descartar. Seria comparável mais um vez ao procedimento de extrair ouro da terra. Você não extrai o ouro da terra para jogá-lo fora. Da mesma forma, você não busca extrair de um texto a intenção do autor para eliminá-a de sua interpretação. Se você faz o contrário, colocar informação no texto ao invés de extrair, o produto não será a interpretação com base na intenção do autor, mas da sua própria intenção – a intenção do leitor/intérprete. O que temos, na verdade, na maioria dos casos, é uma interpretação mista das intenções do autor e leitor. E estas interpretação mistas são as mais difíceis de perceber onde está o erro. Um leitor não "antenado" acaba levando tudo, os gatos e as lebres, no mesmo balaio.

Certamente quando Paulo escreveu sua carta aos romanos ele não contava com sua contribuição de coautoria da carta! Tendo dito isso, podemos analisar o contexto imediato com mais segurança. E para conduzirmos uma boa exegese do texto, sem correr o risco de produzir uma eisegese, vamos começar com uma análise do esboço dos primeiros capítulos de Romanos (1 a 4) que englobam (contextualizam) suficientemente nosso texto em análise.

1. Prefácio e saudação
2. Paulo deseja ver os cristãos em Roma
3. A idolatria e a depravação dos gentios
4. O julgamento divino
5. Os judeus e a lei – a verdadeira circuncisão
6. A fidelidade de Deus
7. Todos os homens estão debaixo do pecado
8. A justificação pela fé em Jesus Cristo

Até aqui apresentei argumentos apenas do contexto mais abrangente. O contexto da teologia paulina e o contexto de uma teologia holística da Bíblia. Falta, então, considerar o contexto mais imediato: o contexto da própria carta aos Romanos.

Se você entendeu e concordou com todos os argumentos que apresentei para a interpretação de Romanos levando em consideração um contexto mais amplo, você facilmente deduzirá que o contexto imediato também não poderá ser uma defesa de Paulo de uma salvação pelas obras da lei. Isso seria fazer uma interpretação particular, isolada do contexto mais amplo. Isso não é o que a boa hermenêutica recomenda. O contexto imediato do texto precisa estar harmonizado com contexto mais amplo. E se o contexto imediato do texto em nossa análise também não pode ser um que favoreça a interpretação de que paulo defendia uma salvação por obras, então o que é? O que Paulo queria dizer com esse papo de ser julgado pela lei do coração? Vamos ao meu último argumento.

Todo escritor precisa de um roteiro para seguir, para orientar a sua produção do texto. Sem esse roteiro, o texto fica sem pé nem cabeça, carece de objetivo. Esse roteiro, norteador da composição, é composto basicamente da motivação (o que levou o autor a escrever) e dos argumentos (para criticar ou defender) sobre o que se escreve. Paulo tinha tudo isso em mente. E a carta aos Romanos está muito bem dividida em seus argumentos, assim como na organização, no desencadeamento desses argumentos para levar o leitor à mesma conclusão do autor, que é a intenção dele. Imagine se eu estivesse aqui empenhado em escrever um texto para provar a tese A e meus argumentos são trabalhados para fazer você concluir B? Isso não tem lógica.

Observe, mais uma vez, a temática com que Paulo vem trabalhando nos primeiros capítulos de sua carta através do esboço apresentado acima. Após a costumeira saudação que Paulo faz em suas cartas, geralmente sem aquele tom de ensino teológico, ele abre sua primeira argumentação que vai sendo somada a outras ao longo da carta para culminar em Cristo e sua salvação na virada do capítulo 8 - “Desgraçado homem que sou! Quem me livrará do corpo desta morte? Graças a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor! Desse modo, com a mente eu mesmo sirvo à lei de Deus, mas com a carne, à lei do pecado. Portanto, agora já não há condenação alguma para os que estão em Cristo Jesus” (Romanos 7:24-25 e 8:1). Quando Paulo termina sua saudação no capítulo 1 e diz: “vamos ao que interessa” para chegar ao ápice no fim do capítulo 7, ele já abre o discurso falando da idolatria e da depravação dos gentios. Como estava escrevendo para uma igreja mista, composta de judeus e gentios, ele também fala da situação dos judeus. Uma vez que tanto gentios quanto judeus estão na mira de Paulo, ele conclui: todos estão debaixo do pecado. Veja o esboço novamente, agora com destaques:

1. Prefácio e saudação
2. Paulo deseja ver os cristãos em Roma
3. A idolatria e a depravação dos gentios
4. O julgamento divino
5. Os judeus e a lei – a verdadeira circuncisão
6. A fidelidade de Deus
7. Todos os homens estão debaixo do pecado
8. A justificação pela fé em Jesus Cristo

Vamos analisar os tópicos do esboço de trás para frente. A justificação pela fé em Jesus Cristo é a resposta de Paulo para Todos os homens estão debaixo do pecado. A fidelidade de Deus é a resposta de Paulo para Os Judeus e a lei – a verdadeira circuncisão. E O julgamento divino é a resposta de Paulo para A idolatria e a depravação dos gentios. Observe como um assunto puxa naturalmente o outro. Vamos resumir desta forma:

Os gentios são idólatras e depravados. O julgamento divino será justo para eles. Eles são merecedores do juízo. E não pense que os judeus estão livres desse julgamento porque não é a circuncisão da carne que os salvará. Mas, mesmo diante de tudo isso, há esperança. Deus é fiel. Mesmo que todos os homens, gentios e judeus, estejam debaixo do pecado encontramos esperança na justificação pela fé em Jesus Cristo.

O nosso texto em análise encontra-se no tópico O julgamento divino de nosso esboço. Lembre-se que O julgamento divino é desdobramento do tópico anterior:A idolatria e depravação dos gentios, que prepara o terreno para mostrar que, juntamente com os judeus, todos os homens estão debaixo de pecado e encontrarão salvação somente em Jesus Cristo por meio da fé.

Portanto, quando Paulo fala que os gentios serão julgados pela lei de seus corações mesmo não tendo a lei de Moisés que os judeus tinham o privilégio de ter, ele não está dizendo que os gentios seriam salvos por essa lei, mas que seriam todos condenados por ela. Observem que o texto não diz assim: “Porque todos os que sem lei pecaram, sem lei também perecerão; e todos os que sob a lei pecaram, pela lei serão salvos”. Não, o texto diz que pela lei serão julgados!(Romanos 2:12)

Ainda dentro desse mesmo contexto Paulo afirma sobre a condição dos gentios: “esses homens são indesculpáveis” (Romanos 1:20). E são indesculpáveis por quê? “Porque o que se pode conhecer sobre Deus é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou. Pois os seus atributos invisíveis, seu eterno poder e divindade, são vistos claramente desde a criação do mundo e percebidos mediante as coisas criadas...” (Romanos 1:19-20).

É muito comum encontrar Paulo antecipando os questionamentos de seus leitores com perguntas retóricas mais adiante em sua carta. E acredito que ele faz o mesmo aqui quando mostra que os gentios também não têm desculpas para escapar do julgamento divino alegando que desconheciam a lei de Deus. Falando em termos teológicos, Paulo coloca a Lei como parte da revelação geral. É claro que a Lei escrita e disponível para os judeus era uma revelação especial, e há vantagens nisso. Mas a Lei também foi manifestada na revelação geral.

Se a lei é uma revelação especial para os judeus e geral para os gentios, ninguém tem desculpas, e serão todos julgados pela lei. Uma vez que “ninguém será justificado diante dele pelas obras da lei; pois pela lei vem o pleno conhecimento do pecado" (Romanos 3:20), Deus não cometerá injustiça em julgar judeus e gentios!

Portanto, o que Paulo queria defender era a justiça de Deus. Ele queria provar que Deus é justo em julgar as pessoas. Que todos estão debaixo do pecado e são indesculpáveis, seja pela revelação geral ou pela revelação especial de sua Lei que nunca intencionou salvar ninguém, apenas condenar! “Se tivesse sido dada uma lei que pudesse conceder vida, a justiça, na verdade, seria pela lei” (Gálatas 3:21). “Porque pela graça sois salvos, por meio da fé, e isto não vem de vós, é dom de Deus; não vem das obras, para que ninguém se orgulhe” (Efésios 2:8-9).

Será que vamos agora admitir que os gentios terão o direito de se orgulharem por obterem salvação por meio da obediência da lei nos corações deles? É claro que não! E “se é pela graça, já não é pelas obras; do contrário, a graça já não seria graça” (Romanos 11:6).

Onde chegamos com tudo isso? Se ficou claro que ninguém será salvo pela lei, mas somente pela graça mediante a fé em Jesus Cristo; percebemos a importância das missões. Não há salvação para aqueles que ainda não foram alcançados pela pregação da boa nova de Jesus Cristo.

É necessário que todos invoquem o nome do Senhor para ser salvo. Como, pois, invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem não ouviram falar? E como ouvirão, se não há quem pregue? E como pregarão, se não forem enviados? Assim como está escrito: Como são belos os pés dos que anunciam coisas boas! Romanos 10:13-15

Ou nos alistamos na obra missionária,
ou sustentamos nossos missionários!

Autor: André R. Fonseca
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