Evangélicos sem espetáculo


Evangélicos sem espetáculo
O ESTADO DE S. PAULO
08 de agosto de 2011
Evangélicos sem espetáculo
Pessoas religiosas e seculares fazem um grande trabalho humanitário, mas às
vezes não trabalham juntas por suspeitas mútuas
Nicholas D. Kristof, The New York Times
Nesta época de polarizações, poucas palavras provocam tanta aversão nos
ambientes liberais quanto "cristão evangélico".
Em parte, isto se explica porque, nos últimos 25 anos, os evangélicos foram
associados a personagens rabugentos e fanfarrões. Quando os reverendos Jerry
Falwell e Pat Robertson debateram na televisão se os ataques de 11 de
Setembro foram uma punição de Deus contra as feministas, os gays e os
secularistas, Deus deveria tê-los processado por difamação.
Anteriormente, Falwell defendera que a AIDS é "o julgamento de Deus sobre a
promiscuidade". Esta presunção religiosa permitiu que o vírus da AIDS se
espalhasse, constituindo uma imoralidade maior do que tudo o que poderia
acontecer nas saunas gays.
Em parte, por causa desta postura bem-pensante, todo o movimento evangélico
frequentemente foi condenado pelos progressistas como reacionário, míope,
irracional e até mesmo imoral.
Entretanto, esse menosprezo casual é profundamente injusto, se considerarmos
o movimento como um todo. Ele reflete um tipo de intolerância às avessas, às
vezes um fanatismo às avessas, dirigido contra dezenas de milhões de pessoas
que na realidade se envolveram cada vez mais na luta contra a pobreza e na
defesa da justiça global.
Essa linha compassiva da corrente evangélica foi dotada de bases
extremamente sólidas pelo reverendo John Stott, um moderado estudioso inglês
que influiu de maneira muito mais importante no cristianismo do que astros
da mídia como Robertson ou Falwell. Stott, que morreu há alguns dias aos 90
anos, foi incluído na lista das cem pessoas mais influentes do globo da
revista Time. Em termos de estatura, às vezes foi considerado o equivalente
do papa entre os evangélicos de todo o mundo.
Stott não pregou acenando com a ameaça das penas do inferno numa rede cristã
de televisão. Ele foi um humilde estudioso cujos 50 livros aconselham os
cristãos a emular a vida de Jesus - principalmente sua preocupação com os
pobres e os oprimidos - e a se opor a mazelas sociais como a opressão racial
e a poluição ambiental.
"Os bons samaritanos sempre serão necessários para socorrer os que foram
assaltados e roubados; entretanto, seria melhor acabar com os bandoleiros na
estrada de Jerusalém a Jericó", escreveu Stott em seu livro A Cruz de
Cristo. "Por isso, a filantropia cristã em termos de alívio e ajuda é
necessária, mas muito melhor seria um aprimoramento a longo prazo, e nós não
podemos fugir da nossa responsabilidade política e da necessidade de
participar da transformação das estruturas que inibem este aprimoramento. Os
cristãos não podem olhar com tranquilidade as injustiças que arruínam o
mundo de Deus e degradam suas criaturas".
Stott deu exemplos das injustiças contra as quais os cristãos precisam
lutar: "os traumas da pobreza e do desemprego", "a opressão das mulheres", e
na educação, "a negação de iguais oportunidades a todos".
Para muitos evangélicos que sempre se retraíam quando um "televangélico"
ganhava as manchetes, Stott era um guru intelectual e uma inspiração.
Richard Cizik, presidente da Nova Igreja Evangélica Parceria para o Bem
Comum, que trabalhou heroicamente para combater desde o genocídio até a
mudança climática, me disse: "Contra a charlatanice e a irracionalidade no
nosso movimento, Stott permitiu afirmar que você é "evangélico" e não deve
se arrepender".
O reverendo Jim Wallis, diretor de uma organização cristã chamada Sojourners
(Os visitantes), que trabalha em prol da justiça social, acrescentou: "John
Stott foi o primeiro líder evangélico importante que defendeu o nosso
trabalho na Sojourners". Stott, que foi um aluno brilhante em Cambridge,
também ressaltou que a fé e o intelecto não precisam ser conflitantes.
Há muitos séculos, o estudo profundo da religião era extraordinariamente
exigente e rigoroso; por outro lado, qualquer um podia declarar-se cientista
e passar a exercer a alquimia, por exemplo. Hoje, é o contrário. Um título
de doutor em química exige uma formação rigorosa, enquanto um pregador pode
explicar a Bíblia pela televisão sem dominar o hebraico ou o grego - ou
mesmo sem mostrar interesse pelas nuances dos textos originais.
Os que se denominam líderes evangélicos revelam-se hipócritas, transformando
Jesus em lucro em lugar de emulá-lo. Alguns parecem inclusive homofóbicos, e
muitos que se declaram "a favor da vida" parecem pouco preocupados com a
vida humana depois que ela sai do útero. São os pregadores que aparecem nas
manchetes e são menosprezados.
Escrevendo sobre a pobreza, as doenças e a opressão, encontrei outros ainda.
Os evangélicos estão desproporcionalmente dispostos a doar o dízimo do que
ganham a obras de caridade, em geral ligadas à igreja. O mais importante é
que se procuramos nas linhas de frente, nos EUA ou no exterior, nas batalhas
contra a fome, a malária, as violações nas prisões, a fístula obstétrica, o
tráfico de pessoas ou o genocídio, alguns dos mais corajosos que encontramos
são cristãos evangélicos (ou católicos conservadores, que a eles se
assemelham de muitas maneiras) que vivem verdadeiramente a sua fé.
Não sou particularmente religioso, mas reverencio os que vi arriscando sua
vida dessa maneira - e me enoja ver esta fé ridicularizada em coquetéis em
Nova York.
Por que tudo isto é importante?
Porque tanto as pessoas religiosas quanto as seculares fazem um trabalho
fantástico em questões humanitárias - mas elas frequentemente não trabalham
juntas em razão das suspeitas mútuas. Se pudermos superar este "abismo
divino", poderemos progredir muito mais no combate às mazelas do mundo.
E esta seria, realmente, uma dádiva divina.

TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA