Tradução do artigo “Sentenced to death for a sip of water” publicado no New York Post, no dia 25 de agosto de 2013.
(Leia, e depois assine a petição pela liberdade de Asia Bibi)
Tradução de Laura Laura
Para seus vizinhos, Aasiya Noreen “Asia” Bibi, uma pobre mãe de cinco filhos na pequena vila de Ittan Wali na região central do Paquistão, é culpada — culpada por ser cristã em uma nação que é 97% muçulmana. Há quatro anos ela definha em uma cela por isso, condenada à morte por enforcamento. Seu novo livro de memórias, “Blasfêmia”, foi passado na cadeia para seu marido, que por sua vez repassou para a jornalista francesa Anne-Isabelle Tollet. Cinquenta por cento dos fundos arrecadados com o livro serão para apoio à Bibi e sua família. Tollet diz que a situação é desesperadora.
Constrangido pelo caso de Bibi mas ainda recusando-se a libertá-la por causa de protestos feitos por extremistas, o Governo do Paquistão a transferiu para uma prisão mais remota, esperando que a mulher de 42 anos morra silenciosamente atrás das grades, talvez envenenada por outra companheira de cela. Dois oficiais do Governo que tentaram intervir em seu nome foram assassinados, incluindo o Ministro das Minorias Religiosas Shahbaz Bhatti, que foi morto pelo Talibã.
Neste trecho, Bibi explica a simples “transgressão” que a levou à situação em que se encontra:
Sou vítima de uma injustiça coletiva e cruel.
Estou presa, algemada e acorrentada, banida do mundo e esperando a morte. Não sei quanto tempo me resta de vida. Todas as vezes que a porta da minha cela se abre, meu coração bate mais rápido. Minha vida está nas mãos de Deus e eu não sei o que irá acontecer comigo. É uma existência cruel, brutal. Mas sou inocente. Sou culpada só por ser presumidamente culpada. Começo a ponderar se ser cristão no Paquistão hoje não é somente um fracasso ou um estigma contra você, mas também um crime.
Mas apesar de ser mantida em uma cela minúscula e sem janelas, eu quero que a minha voz e a minha raiva sejam ouvidas. Quero que o mundo inteiro saiba que serei enforcada por ajudar o próximo. Sou culpada por ser solidária com as pessoas. O que eu fiz de errado? Eu bebi água de um poço que pertencia a mulheres muçulmanas, usando a caneca “delas”, no calor escaldante do sol de meio-dia.
Eu, Asia Bibi, fui sentenciada à morte porque estava com sede. Sou uma prisioneira porque usei a mesma caneca que aquelas mulheres muçulmanas, porque a água servida por uma mulher cristã é tida como impura pelas minhas colegas idiotas da colheita.
Aquele dia, 14 de junho de 2009, está marcado na minha memória. Eu ainda consigo ver cada detalhe.
Aquela manhã eu me levantei mais cedo do que de costume, para participar de uma grande colheita. Eu havia sido avisada pela Farah, uma amável comerciante local: “Por que você não vai colher falsa (uma frutinha) amanhã naquele campo fora da vila? Você conhece; pertence aos Nadeems, a família rica que vive em Lahore. O pagamento é 250 rúpias”.
Por ser domingo, meu marido não estava trabalhando na alvenaria. Enquanto eu me arrumava para ir ao trabalho, ele ainda estava dormindo profundamente em nossa grande cama com duas de nossas filhas, que também estavam exaustas depois de uma longa semana na escola. Olhei para eles com amor antes de deixar o quarto, e agradeci a Deus por dar-me uma família tão maravilhosa.
Quando cheguei no campo, cerca de 15 mulheres já estavam trabalhando, colhendo, suas costas escondidas pelos arbustos altos. Iria ser um dia exaustivo fisicamente naquele calor, mas eu precisava daquelas 250 rúpias.
Algumas das mulheres me saudaram com um sorriso. Reconheci minha vizinha, Musarat, que era a costureira de minha vila. Acenei a ela mas ela virou a costas para os arbustos na hora. Musarat não era bem uma agricultora e eu não a via com frequência nos campos, então percebi que os tempos deveriam estar difíceis para sua família. No final das contas, era nossa sina sermos pobres, todos nós.
Uma mulher de expressão dura, vestida com roupas que já haviam sido remendadas muitas vezes, veio até mim com uma velha vasilha amarela.
“Se você encher a vasilha você ganha 250 rúpias”, disse sem nem me olhar direito.
Eu olhei para a vasilha enorme e pensei que jamais terminaria antes do sol se por. Olhando as vasilhas das outras mulheres eu também percebi que a minha era muito maior. Elas estavam me lembrando que eu era uma cristã.
O sol estava forte, e ao meio-dia era como se estivéssemos trabalhando em um forno. Eu estava pingando de suor e mal conseguia pensar ou me mexer por causa do calor sufocante. Em minha mente, eu podia ver o rio ao lado de minha vila. Se pelo menos eu tivesse pulado naquela água fresca!
Mas como o rio não estava nem um pouco perto, eu me livrei dos arbustos e fui até o poço mais próximo. Eu já podia sentir a refrescância vinda do fundo dele.
Puxo um balde cheio de água e mergulho nele uma velha caneca de metal que está ao lado do poço. Só consigo pensar na água fresca. Dou uma golada e me sinto melhor, me recomponho.
Então começo a ouvir um burburinho. Não presto atenção e encho a caneca novamente, dessa vez oferecendo-a à mulher que está próxima de mim e que parece que está com dor. Ela sorri e vem pegá-la... no exato momento em que Musarat põe seu nariz para fora do arbusto com os olhos cheios de ódio:
“Não beba esta água, é haram!”
Musarat se dirige a todas as camponesas que haviam parado de repente de trabalhar ao som da palavra “haram”, o termo islâmico para qualquer coisa proibida por Deus:
“Ouçam todas vocês, esta cristã sujou a água do poço, bebendo de nossa caneca e afundando-a de novo no balde um monte de vezes. Agora a água está impura e não podemos bebê-la! Por causa dela!”
É tão injusto de minha parte que alguma vez eu tenha decidido me defender e enfrentar a bruxa velha.
“Eu acho que Jesus veria isso de uma forma diferente de Maomé”.
Musarat está furiosa. “Como ousa pensar pelo Profeta, animal imunda!”
Outras três mulheres começam a gritar mais alto ainda.
“É isso mesmo, você é só uma cristã imunda! Você contaminou nossa água e agora se atreve a falar pelo Profeta! Cadela idiota, seu Jesus nem tinha um pai de verdade, ele era um bastardo, não sabia?”
Musarat vem como se fosse me agredir e grita: “Você deveria se converter ao Islã para se redimir de sua religião imunda.”
Sinto uma dor profunda. Nós cristãos sempre ficamos quietos: fomos ensinados desde pequenos a nunca dizer nada, a nos mantermos quietos porque somos minoria. Mas sou teimosa também e agora eu quero reagir, quero defender a minha fé. Respiro fundo e encho meus pulmões com coragem.
“Não vou me converter. Eu acredito em minha religião e em Jesus Cristo, que morreu na cruz pelos pecados da humanidade. O que seu profeta Maomé fez para salvar a humanidade? E por que eu é que tenho que me converter, e não vocês?”
Foi aí que o ódio explodiu de todos os lados. Todas as mulheres à minha volta começam a berrar. Uma delas agarra minha vasilha e enfia as frutas de minha colheita na dela. Outra me empurra com força e Musarat cospe em meu rosto com todo o desprezo que consegue. Recebo um chute, me empurram. Mesmo quando corri para casa, ainda podia ouvi-las reclamando.
Cinco dias depois, fui trabalhar com colheita em outro campo. Tinha quase enchido minha vasilha quando escutei o que parecia ser uma multidão revoltada. Saí de trás do meu arbusto imaginando o que estaria acontecendo, e de longe vi dezenas de homens e mulheres vindo rapidamente em direção ao nosso campo, agitando seus braços no ar. Encontrei os olhos cruéis de Musarat. Sua expressão é de dona da razão e cheia de desprezo. Estremeci ao dar-me conta que ela não iria deixar essa história para lá. Notava-se que vinha por vingança. A multidão em polvorosa está mais perto; vem pelo campo e agora estão parados em minha frente, me ameaçando e gritando.
“Cadela imunda! Vamos te levar de volta pra vila! Você insultou nosso profeta! Vai pagar isso com sua vida!”
Todos começaram a gritar:
“Morte! Morte para a cristã!”
A multidão raivosa se fecha cada vez mais perto ao redor de mim. Dois homens me agarram pelos braços para me levar arrastada. Digo com uma voz fraca e desesperada:
“Eu não fiz nada! Deixem-me ir, por favor! Eu não fiz nada de errado!”
Só então alguém me bate no rosto. Meu nariz doi muito e sangra. Eles me arrastam, semiconsciente, como um burro teimoso. Tudo o que consigo fazer é me entregar e rezo para que isso tudo termine logo. Olho para a multidão, aparentemente triunfante por eu quase não ter resistido. Cambaleio debaixo da chuva de pancadas nas minhas pernas, costas e parte de trás da cabeça. Digo à mim mesma que quando chegarmos à vila meu sofrimento terá acabado. Mas quando chegamos, é pior: há ainda mais gente e a multidão se torna mais e mais agressiva, pedindo por minha morte.
Mais e mais pessoas juntam-se à multidão à medida que me empurram para a casa do chefe da vila. Reconheço a casa — é a única que tem um jardim com grama crescendo nele. Jogam-me no chão. O imame fala comigo: “Me disseram que você insultou nosso profeta. Você sabe o que acontece a qualquer um que ataca o sagrado profeta Mohammed. Você pode se redimir só pela conversão ou morte”.
“Eu não fiz nada! Por favor! Eu te implore! Não fiz nada de errado!”
O qari, com sua barba longa e bem escovada se vira para Musarat e as três mulheres que estavam lá no dia da colheita de falsa.
“Ela falou mal dos muçulmanos e nosso sagrado profeta Mohammed?”
“Sim, ela os insultou”, respondeu Musarat, e as outras se juntaram:
“É verdade, ela insultou nossa religião”.
“Se você não quer morrer, diz o jovem mulá, você precisa se converter ao Islã. Você está disposta a se redimir ao tornar-se uma boa muçulmana?”
Soluçando, eu respondo:
“Não, eu não quero mudar minha religião. Mas por favor, acredite em mim, eu não fiz o que essa mulheres estão dizendo, eu não insultei a sua religião. Por favor, tenha piedade de mim”.
Eu uno minhas mãos e clamo a ele. Mas ele não se comove.
“Você está mentindo! Todos estão dizendo que você cometeu essa blasfêmia e isso é prova suficiente. Os cristãos têm que obedecer a lei do Paquistão, que proíbe qualquer comentário depreciativo sobre o profeta sagrado. Já que você não vai se converter e o Profeta não pode se defender, devemos vingá-lo”.
Ele me deu as costas e a multidão em fúria me atacou. Me bateram com pedaços de pau e me cuspiram. Achei que fosse morrer. Então me perguntaram novamente:
“Você vai se converter a uma religião digna de ser chamada de religião?”
“Não, por favor, sou cristã, mas eu imploro a vocês...”
E voltam a me bater com a mesma fúria de antes.
Eu estava quase inconsciente e já quase não sentia mais a dor dos meus ferimentos quando a polícia chegou. Dois policiais me jogaram no camburão, para o delírio da multidão em cólera. Poucos minutos depois eu estava na delegacia de Nankana Sahib.
Na sala do delegado, me sentaram em um banco. Pedi água e compressas para os ferimentos em minha pernas, que sangravam. Um policial jovem me atirou um pano de prato velho e gritou:
“Aí está, e não se acostume!”
Um dos meus braços dói pra valer e penso que talvez esteja quebrado. Só então eu vi o qari entrar com Musarat e a turma dela. Com eu sentada lá, eles disseram ao delegado que eu havia insultado o profeta Mohammed. De fora da delegacia eu conseguia escutar os berros:
“Morte à cristã!”
Depois de escrever a queixa, o policial se virou e falou comigo com uma voz maldosa:
“Então, o que você tem a dizer em sua defesa?”
“Sou inocente! Isso não é verdade! Eu não insultei o profeta!”
Imediatamente me agarraram pelos braços e fui levada pelo camburão. Durante a viagem desmaiei de dor e só recuperei a consciência quando chegamos na Prisão Sheikhupura, onde fui jogada para dentro de uma cela.
Desde aquele dia, não saí mais da prisão.
Trecho extraído com permissão de “Blasfêmia: Um Livro de Memórias” de Asia Bibi, como foi passado à Anne-Isabelle Tollet e publicado pelo Chicago Review Press.
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Via: http://infielatento.blogspot.pt/