Casamento, divórcio e novo casamento - 2/3

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iiiii. Diretrizes para os solteiros, divorciados e viúvas (vs.6-9) 
  
Todavia, o versículo 6 está ligado ao versículo 5c, e não ao contexto inteiro, que compreende os versículos 1-5. O termo concessão συγγνώμην (syngnó̱mi̱n) denota um “sentimento compartilhado”, “ter opinião com”, e refere-se à abstinência sexual que Paulo permite que o casal observe por um tempo. 

Com o pronome demonstrativo isto, o apóstolo não se refere ao casamento em si, mas à abstinência sexual, que é uma exceção de regra dos direitos conjugais (vs.5b), do qual ele é concorde. No entanto, é importante frisar que o apóstolo não impõe essa “licença” para a abstinência sexual como um mandamento.  

Apesar de ter o dom de celibato e a capacidade para a abstinência sexual, o apóstolo não institui este dom para aqueles que não o possuem. “Paulo estabeleceu os deveres de todos os casados, mas não estabelece como dever que todos devem casar-se”.[11] No versículo 7-8, Paulo orienta três classes de pessoas: 1) os que nunca se casaram; 2) os divorciados; 3) as viúvas. 

A vontade do apóstolo é que os homens que nunca se casaram, os divorciados e a viúvas não se casem, mas permaneçam solteiros como ele. Essa afirmação expressa sua vontade, mas não um desejo improvável. Mas por qual motivo Paulo preferia que os solteiros não buscassem o casamento (vs.26,28)? O que Paulo tinha em mente com a expressão por causa da angustiosa situação no presente (vs.26a). Duas coisas, pelo menos. Senão vejamos:

1) Paulo poderia ter em mente as muitas circunstâncias presentes que afligem um casamento, como doenças, problemas financeiros, familiares, com os filhos e com o próprio cônjuge.

2) Tendo em vista o contexto histórico da carta de 1 Coríntios, a tribulação daquela época que Paulo se refere “era a destruição de Jerusalém, que ocorreu cerca de quinze anos após Paulo ter escrito 1 Coríntios. Uma das mais severas pressões que tal crise provocaria seria o impacto destruidor na vida familiar”.[12]

Hernandes Dias Lopes expande:

Paulo está se referindo ao tempo tenebroso de implacável perseguição que a igreja estava prestes a enfrentar. Paulo estava em Éfeso quando escreveu essa carta (2Co 1.8). Esse era o clima que estava surgindo no horizonte. Jerusalém estava prestes a ser cercada. Suas muralhas seriam quebradas. Jesus já havia falado em seu sermão profético: Ai das grávidas e das que amamentarem naqueles dias (Mt 24.19). Por que Jesus disse isso no sermão profético?  
No ano 70 d.C., quando Tito Vespasiano entrou em Jerusalém e quebrou os seus muros, seus soldados rasgaram as entranhas das grávidas com a espada. As mulheres grávidas não podiam correr para se livrarem. Paulo está dizendo que quem é casado numa hora de tribulação, de guerra, de perseguição, de fuga, sofre terrivelmente. Já imaginou um pai fugindo e deixando um filho para trás? Já imaginou uma mãe fugindo da guerra e deixando uma filha indefesa para trás? Já imaginou um marido fugindo e deixando sua mulher para trás? Paulo está mostrando que o clima prenunciava um tempo de uma guerra que estava chegando. Nero já despontava com sua insanidade. O cenário para a perseguição implacável aos cristãos estava montado. Roma seria incendiada em 64 d.C., e os cristãos seriam caçados, perseguidos e mortos por todos os cantos do império.[13]

O casamento é uma instituição de Deus, sendo algo bom e recomendável; entretanto, nem todas as pessoas devem almejar o casamento. Existem homens e mulheres que não possuem a vontade de se casar porque receberam de Deus a capacidade para conter-se pelo celibato. Por outro lado, existem homens e mulheres que não foram dotados com a continência; esses, portanto, devem se casar para não viverem pecando na área sexual. Paulo recebeu o dom para o celibato e se alegrou com essa condição, mas entendia que nem todas as pessoas recebem os mesmos dons. Destarte ele ensina que Deus outorga a cada pessoa o seu dom. Calvino escreve:

O estado de solteiro desfruta de muitas vantagens, e que estas não sejam subestimadas, contanto que cada um viva feliz com sua condição pessoal. Portanto, ainda que a virgindade [ou pureza sexual] seja exaltada até o terceiro céu, não obstante ainda permanece sendo verdadeiro que ela não é praticável a todos, senão apenas aos que a recebem como dom especial de Deus.[14]   
Tendo aconselhado aos não casados, Paulo, agora, dirige-se aos desprovidos da continência, dizendo no versículo 9: Mas, se vocês não podem dominar o desejo sexual, então casem, pois é melhor casar do que ficar queimando de desejo. (NTLH) Ou, conforme traduziu a NVI – pois é melhor casar do que ficar ardendo de desejo.

No grego, o verbo πυρονσθαι (pyrousthai) significa “arder, queimar”. No entanto, para que o sentido fique claro no contexto, devemos acrescentar a expressão desejo sexual. Os tradutores entendem que o verbo por si é incompleto, e por isso necessita de uma explicação. Portanto, conforme a NTLH e a NVI traduziram, o verbo arder, nesse contexto, é relacionado à incontinência. 

Paulo sabe que existem pessoas não casadas que não conseguem exercer o autocontrole na área sexual. A incontinência (desejo sexual) não é pecado, mas ceder a ela é pecado. Aquele que busca o prazer sexual através de meios pecaminosos, tais como a masturbação, pornografia e a fornicação, comete pecado. A fim de solucionar o problema da incontinência, Paulo sugere aos incontinentes que se casem. 
  
Com isso, Paulo não está repreendendo nem desaprovando os que não possuem continência. Pelo contrário, para evitar a possibilidade de ruir em pecado pela incontinência, o apóstolo ordena o casamento para os que não são casados. MacArthur acrescenta que uma pessoa não pode viver feliz e servir ao Senhor efetivamente se dominado por desejo sexual não satisfeito.15 O casamento é o meio para que os incontinentes vivam de maneira santa e felizes em servir a Deus.  
                               
b) A estabilidade do casamento (7.10-11)

Muitos cristãos que vivenciam crises no casamento, com receio do que os outros vão pensar, ficam reclusos e se fazem perguntas num tipo de introspecção. Através de três imperativos, Paulo responde a estas perguntas. Senão vejamos:

O que fazer quando um dos cônjuges se arrepende de ter casado? O que fazer quando um casamento se torna insustentável? Existem muitos casais dentro das igrejas que se arrependeram de ter-se casado, reconhecendo que cometeram um erro. Dentre os motivos do arrependimento, muitos alegam incompatibilidade, precipitação, que no casamento o cônjuge demonstrou ser uma pessoa ociosa, malandra, agressiva e pervertida sexualmente. Em suma, no casamento, o cônjuge esboçou uma faceta completamente diferente da que era no namoro. Sendo assim, o que fazer nessa situação? Cada caso deve ser analisado da melhor forma possível e sobre a égide das Escrituras. Senão vejamos o que Paulo orienta:  
     
i. O casal não deve se separar (vs.10)

Paulo, aqui, dirige-se àqueles que se casaram e estão casados. Mesmo tendo autoridade (veja 5.5, 12; 6.18; 7.5, 8), ele, agora, recorre à autoridade do Senhor Jesus. Paulo utiliza de um método retórico chamado “correctio” para esboçar mais autoridade no imperativo. Com isso, não temos apenas uma mera lembrança do apóstolo de que não foi ele quem disse tais palavras, mas Jesus. Não é muito comum encontrarmos Paulo evocar as palavras de Jesus (veja 1Co 9.14; 11.23; 1Ts 4.15; 1Tm 5.18), o que demonstra ainda mais autoridade à instrução subsequente.

O interessante é que essa prescrição não é uma citação literal das palavras de Jesus, mas uma paráfrase, isto é, uma interpretação, um comentário dos seus ensinos acerca do divórcio (Mt 5.31-32; 19.3-12; Mc 10.2-12; Lc 16.18). Paulo não estabelece uma distinção de autoridade entre o que ele diz e o que o Senhor disse. O cerne é esclarecer que o próprio Jesus deixou instrução sobre a questão do divórcio, enquanto sobre outros assuntos Paulo, como apóstolo de Cristo, é quem aplica e distende os seus ensinamentos (veja o vs.12, 25,40).  

Simon Kistemaker ressalta:

Paulo afirma que ele tem uma ordem para pessoas casadas que vem não dele, mas do Senhor. Ele usa as palavras de uma tradição oral do Evangelho. Supomos que Paulo tenha ouvido essa declaração dos outros apóstolos, provavelmente de Simão Pedro (Gl 1.18, 19), e assim recebeu-a indiretamente de Jesus. Paulo cita a palavra de Jesus preservada na tradição evangélica, que para ele e os coríntios têm autoridade divina. Na verdade, os apóstolos e a Igreja primitiva conferiam a mesma importância às Escrituras do Antigo Testamento e ao Evangelho oral ou escrito. Para eles, ambos tinham igual autoridade. E Paulo sabia que, com respeito ao casamento e divórcio, os cristãos coríntios ouviriam e obedeceriam à voz de Jesus. Escrevendo sobre esse assunto, Paulo não exerce mais a sua autoridade, e sim a do Senhor. Paulo se põe de lado e permite que Jesus fale diretamente aos coríntios.[16]
Nessa carta, Paulo revela que por muitas vezes recebeu palavras ou ordens do Senhor, que podem lhe ter vindo diretamente por visão ou indiretamente por meio dos apóstolos (veja 9.14; 11.23; 14.37; 15.3; compare com 1Ts 4.15)”.[17] 

Todavia, o evangelho de Marcus relata o embate teológico entre Jesus e os fariseus (Mc 10.2-12). Eles o indagaram acerca do divórcio. Jesus, por sua vez, recorreu à Escritura, citando o relato da criação (Gn 1.27; 2.24). Por conseguinte, Jesus acrescenta seu comentário, dizendo: De modo que já não são dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus ajuntou não separe o homem (Mc 10.8b-9). 

Desejando saber mais sobre a questão do divórcio, os discípulos decidem inquirir Jesus em busca de mais respostas. Sendo assim, Jesus acentua: O homem que se divorciar de sua esposa e casar com outra comete adultério contra aquela. E se a esposa se divorciar de seu marido e casar com outro, comete adultério (Mc 10.11-12). (minha tradução)     
  
Os judeus e os gentios da época de Paulo tinham uma concepção semelhante a respeito do divórcio. Entretanto, antes da releitura da Torá proposta por Hilel, a tradição judaica admitia o divórcio apenas por três motivos: falha em fornecer alimento, falha em fornecer roupas e descumprimento dos deveres conjugais, baseando-se em Êxodo 21.10-11 e Deuteronômio 24.1-4. Essa foi a interpretação da lei durante anos. O rabino Hilel, no entanto, no primeiro século antes de Cristo, mudou a interpretação de Deuteronômio 24.1-4, afirmando que o homem poderia se separar de sua esposa por qualquer motivo ou por ter achado algo indecente nela, e tornou a lei no judaísmo semelhante à lei grega corrente. Tanto o homem quanto a mulher poderiam pedir divórcio e havia nos contratos de casamento provisão para esse caso. Era comum os contratos fazerem referência ao tríplice dever (comida, roupas e amor) e indicarem a possibilidade de divórcio caso não fosse cumprido, embora os contratos aramaicos fizessem maior referência ao término do casamento em caso de morte do que em caso de divórcio. Era nesse contexto de grande facilidade quanto ao divórcio que os cristãos coríntios viviam.[18]

O Evangelho de Marcos, no entanto, escrito num contexto romano e dirigido a gentios, reflete o mundo greco-romano. Nesse mundo, a mulher tinha o direito de tomar a iniciativa e separar-se de seu marido, o que é eufemismo para divórcio. A possibilidade realmente existe de que mulheres influentes da igreja de Corinto tivessem consultado Paulo a respeito das relações maritais e do divórcio. O apóstolo responde a elas com uma palavra de Jesus. O relato da criação ensina a unidade de esposo e esposa, a qual, segundo Jesus, não deve ser quebrada. O profeta Malaquias também se refere à narrativa do Gênesis e denuncia o divórcio como uma quebra da aliança que o marido fez com sua mulher. Ele cita a palavra do Senhor Deus, que exclama: Eu odeio o divórcio (Ml 2.14-16). A intenção de Deus é que os votos de casamento não sejam dissolvidos. Jesus permite uma exceção somente quando um dos cônjuges se torna infiel ao outro (Mt 5.32; o paralelo em Lucas 16.18 omite a exceção). A regra que data do começo da história humana é que uma esposa não pode se divorciar de seu marido e que, da mesma forma, um marido não pode mandar embora sua esposa (v. 11).[19] 

Diante disso, a ordem de Paulo, baseada no ensinamento de Jesus, é para o casal não se divorciar, exceto por causa de adultério.  
            
ii. Se houver a separação por parte da mulher, que ela não se case novamente ou se reconcilie com o marido, que, da mesma forma, não se separe da mulher (vs.11)  

A segunda pergunta que os coríntios fizeram a Paulo deve ter sido esta: O que fazer quando um casamento se torna insustentável? Paulo oferece duas soluções: 1) Se houver a separação, fique sozinha. 2) Após um tempo separados, talvez para refletir sobre o casamento da melhor forma possível, que a mulher tente a reconciliação com o marido. No decorrer da explanação essas perguntas serão respondidas.   
  
Não obstante, podemos observar que a esposa é quem toma a iniciativa de separar-se do marido (vs.10-11). Por outro lado, no Evangelho de Mateus, vemos que o marido é quem toma a iniciativa de separar-se de sua esposa (Mt 19.9). É importante destacar que o público de Mateus é composto por judeus, no qual o marido podia separar-se de sua esposa somente em caso de relações sexuais ilícitas, porém a mulher não tinha o direito de separar-se do marido. Com a proposição condicional no grego se ἐὰν (eán), Paulo demonstra que a ocorrência do divórcio é possível. Todavia, é bem provável que, na igreja de Corinto, havia casos de esposas estarem iniciando os procedimentos necessários para se divorciarem de seus maridos por outros motivos que não fossem a infidelidade na área sexual; um desses motivos seria o ascetismo, talvez.  

Werner de Boor acrescenta que é possível que uma mulher já tenha se separado do marido. Paulo deve ter recebido notícias nesse sentido. Ao que parece, ainda não aconteceu que esposas foram deixadas pelos maridos; mas certamente uma ou outra mulher já havia se separado. Essas circunstâncias também se refletem no fato de que no versículo anterior, Paulo se dirige extraordinariamente primeiro à mulher, impedindo-a de separar-se do marido.[20]

Uma vez que a mulher não deve se divorciar do seu marido, da mesma forma o marido não deve se divorciar de sua esposa (vs.11b).  

Embora o marido tivesse na sociedade judaica e greco-romana a prerrogativa de se divorciar e tivesse maior liberdade do que a mulher, Paulo ensina o que as Escrituras dizem sobre este assunto. Ele se recusa a seguir a cultura de seu tempo, mas se prende à Palavra de Deus. Ele proíbe o marido de mandar sua esposa embora. Fica implícito que o marido precisa lutar por reconciliação no caso de um divórcio, porque o casamento é para toda a vida.[21]   

Note que Paulo está apontando para um mandamento de Jesus, no entanto, apresenta uma situação que não foi mencionada por Ele em seus ensinamentos, nos Evangelhos, ou seja, a mulher tomar a iniciativa de se divorciar. Outra questão que deve ser observada, é que a possibilidade do divórcio sugerida por Paulo é vetada pelos mandamentos de Jesus (veja Mt 5.31-32, 19.3-9; Mc 10.2-12; Lc 16.18). 
   
Logo, uma pergunta surge: O cristão pode se divorciar por outro motivo que não seja por adultério, visto que Paulo pode ter demonstrado essa possibilidade?     

Deus é terminantemente contra o divórcio. Ele odeia o divórcio (Ml 2.16). Deus tolera e até permite o divórcio no caso de adultério, porém não se agrada disso. A sua vontade (prescritiva) é que haja a reconciliação do casal, e não o divórcio. Paulo também não apoia o divórcio em hipótese alguma (vs.12-14). Ele ratifica o ensino de Jesus de que o divórcio só é legítimo e permitido em caso de infidelidade conjugal. Contudo, o mesmo Paulo deixa implícito que existem algumas exceções que tornam o divórcio lícito e até necessário, bem como o novo casamento (vs.15-16), o que veremos mais adiante.  

Continua nos próximos dias...

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Notas:
11. Leon Morris. 1 Coríntios – introdução e comentário, pág 86.
12. David Prior. A mensagem de 1 Coríntios, pág 140.
13. Hernandes Dias Lopes. 1 Coríntios, pág 141-142.
14. Calvino. 1 Coríntios, pág 209. 
15. Bíblia de Estudo MacArthur. Notas de Rodapé, pág 1536.
16. Simon Kistemaker. 1 Coríntios, pág 311.    
17. Ibid.   
18. Instone Brewer, David. 1 Corinthians 7, Divorce, pág. 225-243.
19. Simon Kistemaker. 1 Coríntios, pág 312.   
20. Werner de Boor. 1 Coríntios, pág 61.
21. Simon Kistemaker. 1 Coríntios, pág 314.    

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Fonte: Bereianos