Como o Magistério Católico interpreta a doutrina da Predestinação?

 

PASSAGENS BÍBLICAS QUE GERARAM NA IGREJA PRIMITIVA A CONTROVÉRSIA DA PREDESTINAÇÃO:

 

 

 

Efésios 1,3-14:  “Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos abençoou com toda a bênção espiritual nas regiões celestes em Cristo, assim como nos escolheu nele antes da fundação do mundo para sermos santos e sem defeito perante Ele, e em amor nos predestinou para sermos adotados como filhos por Jesus Cristo para si mesmo, conforme o beneplácito da sua vontade, para o louvor da glória da sua graça, a qual nos deu gratuitamente no Amado, no qual temos a nossa redenção pelo seu sangue, a remissão dos nossos delitos segundo a riqueza da sua graça, a que fez abundar para conosco em toda a sabedoria e prudência, fazendo conhecido a nós o mistério da sua vontade, segundo o seu beneplácito que nele propôs para uma dispensação do cumprimento dos tempos, para reunir todas as coisas em Cristo, as que estão nos céus e as que estão sobre a terra; nele, digo, no qual também fomos feitos herança, tendo sido predestinados conforme o propósito daquele que faz tudo segundo o conselho da sua vontade...”

 

 

Romanos 9,13-21: “Como está escrito: Eu amei a Jacó, porém aborreci a Esaú. Que diremos, pois? Há, porventura, em Deus injustiça? De modo nenhum. Pois a Moisés disse: Terei misericórdia de quem me aprouver ter misericórdia, e terei compaixão de quem me aprouver ter compaixão. Assim, pois, não é daquele que quer, nem daquele que corre, mas de Deus que usa de misericórdia. Pois disse a Escritura a Faraó: Para isto mesmo te levantei, para mostrar em ti o meu poder, e para que seja anunciado o meu nome por toda a terra. Logo ele tem misericórdia de quem quer, e a quem quer endurece. Logo, pois, compadece-se de quem quer, e endurece a quem quer. Dir-me-ás então: Por que se queixa ele ainda? Porquanto, quem tem resistido à sua vontade? Mas, ó homem, quem és tu, que a Deus replicas? Porventura a coisa formada dirá ao que a formou: Por que me fizeste assim? Ou não tem o oleiro poder sobre o barro, para da mesma massa fazer um vaso para honra e outro para desonra?...”

 

 


 

Romanos 8, 28-30: “Sabemos que aos que amam a Deus, todas as coisas lhes cooperam para o bem, a saber, aos que são chamados segundo o seu propósito. Porque os que dantes conheceu, também predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele fosse o primogênito entre muitos irmãos; e aos que predestinou, a estes também chamou; e aos que chamou, a estes também justificou; e aos que justificou, a estes também glorificou...”

 

 

II Timóteo 1,9: “que nos salvou e nos chamou com uma santa vocação, não segundo as nossas obras, mas segundo o seu propósito e segundo a graça que nos foi dada em Cristo Jesus antes dos tempos eternos...”

 

 

Atos 13,48: “Os gentios, ouvindo isto, regozijavam-se e glorificavam a palavra do Senhor, e creram todos os que estavam destinados para a vida eterna...”

 

 

 


 

 

D. Estevão Bettencourt, OSB  e a doutrina da Predestinação

 

 

 

“Afinal a doutrina católica admite ou não a predestinação? Em que se distinguiria do fato ou do destino a predestinação?”

 

 

 

Abordamos aqui uma das questões mais elevadas da fé cristã. Para penetrá-la, o estudioso tem que se resolver a não se deixar levar pelo sentimentalismo nem pelo antropocentrismo. Mas estritamente pelos dados da Revelação, que é sobrenatural (não, porém, anti-natural) e teocêntrica.A questão da predestinação se prenda à do mal, de que trata “Pergunte e Responderemos” nº 5/1957 qu. 1. Tenha-se em vista o que aí se diz:

 

1)-A possibilidade de errar é inerente ao conceito mesmo da criatura.

 

2)-Esta possibilidade se realizou no mundo quando o primeiro homem cometeu livremente o erro ou o mal moral, o pecado.

 

3)-Os males físicos (misérias e morte) são consequências do pecado.

 

4)-A culpa dessas desordens recai em última análise sobre o livro arbítrio do homem, não sobre Deus. (o Qual quer que TODOS se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade).

 

5)-Este se apiedou da criatura, tomando a sua sorte na Encarnação e na morte de cruz, a fim de dar valor salvífico ao sofrimento.

 

 

Entremos agora no tema da predestinação

 

 

Conceito e existência da predestinação

 

 

Por predestinação entende-se em Teologia o desígnio, concebido por Deus, de levar a criatura racional (o homem) ao fim sobrenatural, que é a vida eterna. Note-se logo que este desígnio tem por exclusivo objeto a bem-aventurança celeste; não há predestinação para o mal ou o inferno. A Sagrada Escritura atesta amplamente a existência de tal desígnio no Criador. De um lado, ela ensina que a Boa Notícia da salvação deve ser anunciada a todos os povos (cf. Mt 28,19) e que Deus quer “sejam salvos todos os homens e cheguem ao conhecimento da verdade” (cf. 1 Tim 2,4). De outro lado, ela também diz que há homens que se perdem (cf. Jô 17,12) e que o Senhor exerce uma providência especial para salvar os que não se perdem:

 

 

“Sabemos que, com aqueles que O amam, Deus colabora em tudo para o bem dos mesmos, daqueles que Ele chamou segundo o seu desígnio. Pois, aqueles que de ante-mão Ele conheceu, Ele também os predestinou a reproduzir a imagem de seu Filho… E, aqueles que Ele predestinou, Ele também os chamou (à fé); os que Ele chamou, Ele também os justificou (mediante o batismo); os que Ele justificou, Ele também os glorificou” (Rom 8,28-30).

 

 

Cf. Ef 1,3-6; Rom 9,14; 11,33; Mt 20,23; 22,14; 24,22-24; Jô 6,39; 10,28.Na base destes textos, não resta dúvida entre os teólogos, desde o início do Cristianismo, sobre o fato da predestinação. Vejamos agora um ponto mais árduo:

 

Destino e predestinação

 

 

O modo como Deus predestina

 

 

Está claro que o homem, como ser essencialmente relativo, depende do Criador não somente quanto ao seu existir, mas também quanto ao agir; já que ele nada é por si mesmo, também nada pode por si. É Deus, pois, quem lhe outorga o dom de praticar atos bons e, mediante os seus atos bons, chegar ao último fim, à bem-aventurança eterna. Esta conclusão se torna particularmente imperiosa se se tem em vista o caso do cristão: este é chamado a um fim sobrenatural (a visão de Deus face a face), objetivo que, ultrapassando todas as exigências da natureza, só por graça de Deus sobrenatural pode ser alcançado.

 

 

Estas proposições, claras em si mesmas, suscitam sério problema desde que se indague:

 

 

a)-Como conciliar a primazia da ação de Deus no homem com a liberdade de arbítrio da criatura?

 

b)-Não se torna vã esta última debaixo daquela? Ou, vice-versa, não deve aquela retroceder para que seja esta salva guardada?

 

 

 

A fim de resolver a questão, dois sistemas são propostos pelos teólogos:

 

 

 

1. O sistema molinista: segundo L. Molina S. J. (+ 1600), Deus oferece a sua graça a todo homem; este, posto diante da oferta, livremente escolhe aceitá-la ou não; caso a aceite, a graça se torna eficiente, e induz o homem a praticar o bem. Estendendo a sua doutrina à questão da predestinação, Molina ensinava que Deus, desde toda a eternidade, na sua “ciência média”, prevê como cada um dos homens se comportaria com relação à graça nas mais variadas circunstâncias da vida. Diante desta visão, o Criador decreta colocar tal indivíduo em tais e tais circunstâncias em que Ele sabe que a criatura aceitará a graça, e assim irá merecendo a salvação eterna. Desta forma. Deus predestina para a glória, mas – note-se bem – praevisis meritis, depois de haver previsto os méritos da criatura.

 

 

2. O sistema tomista (que tem por pioneiro Domingos Banes O.P. (+ 1604): partindo do princípio de que nada, absolutamente nada, pode haver na criatura que não lhe venha de Deus, ensina que a graça é eficaz por si mesma, anteriormente a qualquer determinação ou atitude do homem; não é este quem determina aquela, mas é a graça que predetermina a este, não moralmente apenas (por meio de exortações), mas fisicamente (por sua moção intrínseca, soberana). Contudo a graça por si eficaz não extingue a liberdade de arbítrio do homem; ao contrário, movendo e predeterminando a criatura, move tudo que nesta se encontra, isto é, as faculdades de agir e o livre arbítrio mesmo; ela dá ao homem não somente agir, e tal agir determinado, mas também a modalidade com que o homem costuma agir, isto é, a liberdade; em conseqüência, sob a graça eficaz (na doutrina tomista) o homem pratica infalivelmente a ação à qual Deus predetermina, mas pratica-a sem perder a sua liberdade, antes atuando-a plenamente. Como se vê, o tomismo é rigorosamente lógico: partindo dos conceitos de Criador e criatura, ensina que Deus deve ser o Autor de tudo aquilo de que também o homem é autor, até mesmo desta determinação do homem e do modo livre de tal determinação; o homem deve a Deus não somente a sua faculdade de livre arbítrio, mas também o uso preciso (tal e tal modo de usar) dessa faculdade.No tocante à predestinação, o tomismo consequentemente afirma que Deus a decreta ante praevisa merita, antes de prever os méritos do homem: de maneira absoluta e independente, o Criador determina levar tal e tal criatura à glória eterna e, por conseguinte, conferir-lhe os meios necessários para que a alcance. Em conseqüência desta predestinação é que o homem produzirá atos meritórios no decorrer da sua vida; estes são gratuitos dons de Deus; não desencadeiam o amor divino, mas, ao contrário, são desencadeados pelo liberal beneplácito do Senhor.

 

 

 

Nos séculos XVII/XIX alguns teólogos procuraram sistemas intermediários, conciliatórios entre o tomismo e o molinismo:

 

 

Recaíram, porém, indiretamente neste ou naquele. De fato, os dois sistemas são irredutíveis um ao outro. Quando foram pela primeira vez propostos na história, o Papa Clemente VIII instituiu em Roma uma Comissão ou Congregação dita “de autxiliis” (“concernente aos auxílios da graça”) a fim de os julgar. As sessões da Congregação prolongaram-se de 2 de janeiro de 1558(?) a 20 de agosto de 1607, tendo os Soberanos Pontífices tomado parte pessoal nos estudos respectivos.

 

 

Finalmente o Papa Paulo V resolveu suspender o exame da questão, declarando lícito ensinar qualquer dos dois sistemas, pois nenhum deles envolve heresia (um é outro salvaguardam suficientemente a soberana ação de Deus e o livre arbítrio do homem, embora o tomismo mais acentue aquela e o molinismo mais realce a este). O Papa bento XIV confirmou esta decisão em um decreto de 13 de julho de 1748.Fica, portanto, aos teólogos e fiéis católicos a liberdade de optar entre as duas teorias acima propostas. O católico tanto pode ser tomista como pode ser molinista; a ação do Espírito Santo em sua alma, a sua conaturalidade com as coisas de Deus lhe sugerirão a atitude a tomar.

 

 

 

Há, porém, três pontos atinentes à doutrina estudada sobre os quais a Santa Igreja se pronunciou definitivamente, de sorte que tanto molinistas como tomistas os professam indistintamente:

 

 

 

1. A conversão do pecador a Deus, ou seja, o ato inicial da via da salvação já é efeito da graça de Deus; é Deus quem primeiramente se volta para o pecador e lhe dá os meios de se colocar em estado de graça; não é o homem quem por suas forças naturais começa a procurar o Senhor, recebendo d’Este em resposta a graça sobrenatural.

 

 

2. A perseverança final ou a morte em estado de graça (a boa morte) é dom especial de Deus: não decorre dos mártires anteriores da pessoa, mas pode ser implorada pela oração.

 

3. A predestinação “adequada” (isto é, o desígnio que compreende todos os auxílios sobrenaturais, desde a graça da conversão até a graça da boa morte) é gratuita ou anterior à previsão dos méritos da criatura. E isto, tanto no tomismo como no molinismo. Também, este reconhece que é Deus quem gratuitamente decreta colocar o homem em tais e tais circunstâncias nas quais Ele prevê que a criatura fará bom uso da graça (o tomismo diria: nas quais Ele predetermina a criatura a fazer livremente bom o uso da graça).

 

 

As três proposições acima foram definidas por concílios, cujas declarações se encontram em Denziger-Umberg, Enchiridion Symbolorum 176-180; 183-189, 191-193;200.

 

 

Um juízo sobre a questão

 

 

1. A muitos fiéis impressiona o fato de que Deus predestina positivamente alguns para a glória celeste, deixando que outros se percam – fato firmemente atestado pela Sagrada Escritura e pela Tradição cristã. Perguntam se não haveria nisto injustiça da parte do Senhor?

 

– Não; em absoluto. Considere-se que:

 

a) Deus a ninguém criou com destino positivo para a perdição ou a condenação.Ensinavam o concílio de Valença (França) em 855: “In malis ipsorum malitiam (Deus) praescivisse, quia ex ipsis est, non praedestinasse, quia ex illo non est. – Deus viu de ante-mão a malícia dos maus, porque provém deles, mas não a predestinou, porque não se deriva d’Ele” (Dz 322).Foi condenada pelo episcopado da Gália no séc. V a seguinte proposição: “Cristo, Senhor e Salvador nosso, não morreu pela salvação de todos…; a presciência de Deus impele o homem violentamente para a morte; e todo aquele que se perde, perde-se por vontade de Deus…; alguns são destinados à morte, outros predestinados à vida” (carta de Fausto de Riez, ed. Migne lat. T. 53,683).Outras declarações da Igreja se encontram em Dz 200; 316-318; 321-323; 514; 816; 827.

 

 

b) Deus, porém, criou seres finitos (só pode haver um Infinito, Deus), aos quais é inerente a falibilidade, o “poder errar”.

 

 

c) Esta falibilidade, sendo congênita, naturalmente tende a se atuar num ou noutro. Deus concede, sim, a qualquer indivíduo humano os meios necessários para que se salve pois quer a salvação de todos os homens (cf. 1 Tim 2,4); isto é doutrina freqüentemente afirmada pela Escritura e a Tradição (cf. Dz 318); nenhum desses meios de salvação, porém, força a liberdade humana; esta é sempre respeitada por Deus.

 

 

d) Por conseguinte, a menos que o Criador intervenha extraordinariamente, algumas criaturas, em virtude da sua falibilidade natural, se encaminham para a ruína eterna; o Criador não lhes faz injustiça se permite que se percam, apesar de terem os meios necessários para não se perderem.

 

 

e) Dado, porém, que Deus se empenhe infalivelmente pela salvação de alguns (muito ou poucos) homens, predestinando-os à glória eterna, Ele faz ato de pura misericórdia beneficia gratuitamente a estes, sem lesar em absoluto aos outros, que, por sua natural falibilidade e apesar dos auxílios divinos, se perdem (cf. a parábola dos operários na vinha, comentado em “Pergunte e Responderemos” 1/1958 qu. 8).

 

 

O concílio de Quierzy na Gália em 853 declarava:

 

 

“Quod quidam salvantur, salvantis est donum; quod autem pereunt, pereuntilum est meritum. – O fato de que alguns se salvam, deve-se a um dom d’Aquele que os salva; o fato de que outros se perdem, deve-se ao mérito (mérito mau ou demérito) dos que se perdem” (Dz 318).

 

 

Deus, no caso de uns, manifesta sua Bondade transcendente; no caso de outros patenteia sua Justiça; em todo e qualquer caso, porém, faz reluzir sua soberana Liberdade, a qual não pode ser necessitada por bem algum criado, pois ela é o princípio e a causa de qualquer bem:

 

 

“Que é que te distingue dos outros? E que tens que não hajas recebido? E, se o recebeste, porque te vanglorias como se não o tivesses recebido?” (1 Cor 4,7).

 

 

Maria Santíssima reconhece isto em sua vida:

 

 

“O meu espírito se alegra em Deus meu Salvador; Porque atentou ao nada de sua serva; Pois eis que desde agora todas as gerações me chamarão bem-aventurada, Porque me fez grandes coisas o Poderoso; E santo é seu nome.”  Lucas 1,47-49

 

 

 

A predestinação, portanto, não implica injustiça em Deus; não deixa, porém, de constituir um mistério. Mistério porque, com nosso intelecto finito, não vemos plenamente como em Deus se conciliam Justiça, Misericórdia e Liberdade, embora não nos seja plausível duvidar de que de fato se associam em estupenda harmonia (na visão face a face de Deus, no céu, contemplaremos a sábia combinação dos atributos divinos). – Em particular, não podemos assinalar motivo por que Deus escolhe tal homem para a glória, e não tal outro, por que escolheu Pedro e não Judas; lembremo-nos de que não são os méritos do homem que a este atraem o amor de Deus, mas é o amor antecipado de Deus que proporciona à criatura os respectivos méritos Sto. Agostinho admoestava:

 

 

“Quare hunc trahat (Deus) et ilum non trahat, noli velle diiundicare, si non vis errare. – Porque é que Deus atrai a este e não aquele, não queiras investigar, se não queres errar” (In Io tr. 26 init.).

 

 

Ante os desígnios do Criador, tome a criatura uma atitude de silêncio reverente; confie em Deus, cuja sabedoria e santidade certamente ultrapassam as de qualquer ser humano.

 

 

 

2. A luz dos procedentes, vê-se que sentido tem a frase de São Paulo: “Deus quer que todos os homens sejam salvos” (1 Tim 2,4). São Tomas (I Sent. D. 46, q. 1, a.1) a distingue nos termos seguintes:

 

 

 

a) Deus quer que se salvem todos os homens, enquanto os considera em si, como criaturas capazes de apreender a vida eterna, abstração feita das circunstâncias particulares em que tal ou tal homem se possa encontrar; Deus a ninguém criou senão para a vida eterna.

 

 

b) O Criador, porém, não pode (não pode, por causa de sua própria Justiça) querer que todos se salvem, se considera cada um nas circunstâncias precisas em que ocorre ao Divino Juiz; alguns, com efeito, se Lhe apresentam como criaturas que deliberadamente rejeitam ser salvas ou recusam estar com Deus, pois se rebelaram conscientemente (por um pecado grave) contra Ele e permanecem impenitentes ou apegados ao pecado; o Senhor respeita o alvitre de tais homens e, em conseqüência, só pode querer assinalar-lhes a sorte por que optaram (embora tenha feito tudo para se salvarem).Seria como Deus conceder o mesmo prêmio, ou condenação, de uma Madre Teresa de Calcutá e Hitler.

 

 

É esta a famosa distinção entre “vontade antecedente” (isto é, que considera seu objeto em si, abstraindo das circunstâncias concretas em que ocorre) e “vontade consequente” (isto é, que considera o mesmo na situação precisa em que se acha). S. Tomas ilustra a doutrina lembrando o que se dá com todo juiz justo: este, em tese, antes de examinar as causas judiciárias, quer que todo e qualquer homem permaneça em vida; dado, porém, que se apresente algum homicida, ele não pode (porque é justo) deixar de querer seja punido (e punido com a pena de morte, onde esta é imposta pela lei).

 

 

 

A atitude prática do cristão

 

 

O mistério da predestinação dos justos para a glória, embora apresente seus aspectos luminosos, tem suas raízes na insondável Magnificência divina; não podemos sempre assinalar a causa por que Deus outorga tal dom a tal pessoa. A quem o interrogasse a respeito. Ele diria com o Senhor da parábola:

 

“Amigo, não cometo injustiça para contigo. Toma o que te compete, e vai-te. Não tenho o direito de dispor dos meus bens como me agrada? Ou tornar-se-á mau o teu modo de ver pelo fato de que Eu sou bom?” (Mt 20,13-15).

 

 

Consciente disto, o cristão não se detém em perscrutar sutilmente o que está acima do seu alcance, preocupando-se com questões curiosas ou vãs atinentes à predestinação. Na orientação da sua conduta cotidiana, tenha o fiel ante os olhos as três seguintes proposições:

 

 

1. Deus a ninguém absolutamente faz injustiça, nem no decorrer desta vida nem no momento do juízo final.

 

 

2. Muito ao contrário, o Criador se comporta para com todos qual Pai cheio de amor ou como o primeiro Ator empenhado na salvação dos homens.Lembra o concílio de Trento, retomando palavras de Sto. Agostinho:

 

“Deus não manda o impossível, mas, dando os seus preceitos. Exorta-te a fazer o que podes e a pedir-lhe a graça para o que não podes, e auxilia-te para que o possas” (Sto Agostinho, de natura et gratia 43,50; Denziger 804).

 

 

Mais ainda:

 

 

“Deus não abandona a não ser que primeiro seja abandonado. – Non deserit nisi prius deseratur” (Dz 804).

 

 

3. A atitude prática do cristão encontra ótimo modelo em São Paulo:

 

 

a) De um lado, o Apóstolo, consciente da eficácia e da responsabilidade do livre arbítrio, lutava qual bom atleta no estádio para conseguir a incorruptível coroa da vida (cf. 1 Cor 9, 24-27). No mistério da predestinação, muita coisa pode ficar oculta ao fiel; contudo nunca lhe restará dúvida sobre o fato de que Deus exige de cada um todo o zelo de que é capaz para chegar à salvação. Nisto se diferencia a doutrina tradicional cristã de qualquer fatalismo ou determinismo: Deus não retira ao homem o dom do livre arbítrio e da responsabilidade própria com que o quis dignificar; nem há força super-humana cega que de antemão torne vãos os esforços da criatura que procura o Criador. Portanto, errado estaria quem, com vistas à vida eterna, tomasse atitude desinteressada e passiva, baseada em raciocínio análogo ao seguinte: “Se tenho que quebrar a cabeça, nada me pode preservar desta desgraça; não importa, pois, que me atire ou deixe de me atirar à rua pela janela do quinto andar da casa”. Ó homem, nada há que determine a tua sorte eterna independentemente do teu livre arbítrio! O decreto pelo qual Deus predestina alguém à salvação eterna, implica sempre que esta será obtida mediante a livre cooperação do homem.

 

 

b) De outro lado, São Paulo, o lutador de Cristo, era feliz ao pensar na sua sorte póstuma; assim também o cristão. Para o Apóstolo, morrer equivalia a “dissolver-se para estar com Cristo” (cf. Flp 1,23), “deixar de ser peregrino na terra a fim de viver na casa do Senhor” (cf. 2 Cor 5,8). Todo discípulo de Cristo, embora reconheça a possibilidade de frustrar o seu último fim, tem confiança no Pai do céu e sabe que a procura sincera de Deus na terra não poderá ficar vã junto ao Pai; vive, por conseguinte, em demanda otimista da mansão celeste, consciente de que Deus o chama continuamente a esta após lhe ter preparado os meios para a conseguir. E, firme nesta crença, não permite que hipóteses inconsistentes tomem na sua mente o lugar de verdades seguras.

 

D. Estevão Bettencourt, osb

Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”

Nº 5, Ano 1958, p. 184

 

 


 

PADRE PAULO RICARDO EXPLICA A DOUTRINA DA PREDESTINAÇÃO

 

 

Se Deus criou os homens sabendo que iriam uns para o céu e outros, para o inferno, seria correto dizer que Ele predestinou algumas almas a serem condenadas, assim como predestinou outras à salvação eterna?

 

 

Deve guiar-nos nesta resposta um versículo bíblico:

 

“Deus QUER que TODOS os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade” (1Tm 2, 4).

 

 

Isso significa, em primeiro lugar, que não: Deus não criou nenhum ser humano com a intenção de condená-lo ao inferno.

 

Essa tese oriunda em Santo Agostinho — assumida e deturpada por Calvino em suas consequências mais absurdas, a ponto de o herege reformador defender que Deus teria predestinado o ser humano inclusive ao pecado — deve ser descartada antes de qualquer coisa, sob o risco de blasfemarmos contra a justiça e a santidade divinas. Adotá-la equivaleria a dizer que Deus deseja o mal a suas criaturas.

 

 

Mas o termo predestinação admite, de fato, inúmeros sentidos!

 

 

Por isso, antes de nos aprofundarmos na questão teológica, seria importante deixar bem claro a que, afinal, estamos nos referindo quando usamos este termo. Em um sentido mais amplo, predestinação seria “todo decreto divino por meio do qual Deus, devido à infalível presciência que tem do futuro, fixou e ordenou desde a eternidade todos os eventos que ocorreriam no tempo, especialmente os procedentes diretamente, ou pelo menos influenciados pelo livre-arbítrio do homem” [1]. Neste sentido, falar de predestinação seria o mesmo que falar da Providência Divina, que todas as coisas governa com sabedoria.

 

 

Em um sentido mais estrito, porém, a predestinação diz respeito ao destino eterno que Deus tem reservado para suas criaturas racionais e, em especial, aos seres humanos. Teríamos de falar aqui, portanto, de uma dupla predestinação: uma ao céu e outra ao inferno (sendo esta mais comumente chamada de “reprovação”). Mas as duas precisam ser entendidas do modo ortodoxo. Santo Tomás de Aquino, ao responder se Deus reprova algum homem (S. Th., I, q. 23, a. 3), explica que:

 

 

“A predestinação [ao céu] inclui a vontade de conferir a graça e a glória, assim também a reprovação inclui a vontade de permitir que alguém caia em culpa e de infligir a pena da condenação por esta culpa”.

 

 

Note-se que os verbos usados pelo Aquinate não são os mesmos:

 

 

Em relação aos predestinados, há a vontade de conferir a graça e a glória; em relação aos condenados, há a vontade de permitir que pequem e de infligir a pena devida pelo pecado. As palavras são importantes porque deixam clara a interferência da liberdade humana no projeto original de Deus: embora Ele queira, de fato, que todos os homens se salvem, alguns, em virtude do “não” que respondem ao amor divino, terminam se condenando. Explicação melhor a esse respeito encontramos ainda na Suma Teológica, quando Santo Tomás afirma, em relação à passagem de que “Deus quer que todos os homens se salvem”, tratar-se aqui de sua vontade antecedente, e não de sua vontade consequente:

 

 

Essa distinção não se toma da parte da própria vontade divina, em que não existe antes nem depois, mas da parte das coisas que Ele quer. Para compreendê-lo, é preciso considerar que qualquer coisa, na medida em que é boa, é querida por Deus. Ora, algo pode ser à primeira vista considerado, de modo absoluto, bom ou mau; ao passo que, considerado com outra coisa, e esta é uma consideração consequente, seja exatamente o contrário.

 

 

Por exemplo: que um homem esteja vivo é um bem, matar um homem é mal, se consideramos de modo absoluto. Se, contudo, se acrescenta, para determinado homem, que é um assassino ou um perigo para a coletividade, sob esse aspecto é bom que este homem seja morto, é um mal que viva.

 

 

Daí poder-se falar de um juiz justo: quanto à vontade antecedente quer que todo homem viva, mas quanto à vontade consequente quer que o assassino seja justamente punido e corrigido.

 

 

Assim também,  Deus quer, quanto à vontade antecedente, que todos os homens sejam salvos, mas quanto à vontade consequente quer que alguns sejam condenados, segundo exige sua justiça (I, q. 19, a. 6, ad 1).

 

 

Em suma, o responsável pela própria condenação é sempre o homem, nunca Deus.

 

 

O mesmo não se pode dizer, no entanto, da predestinação ao céu, sob o risco de incorrermos no extremo do pelagianismo.

 

 

A obra da salvação do homem, desde o início até a sua consumação, é de iniciativa divina, pois é Deus “que opera em nós o querer e o fazer” (Fl 2, 13): Ele, “aos que predestinou, também os chamou; e aos que chamou, também os justificou; e aos que justificou, também os glorificou” (Rm 8, 30). Esse trabalho de Deus não dispensa, é claro, a colaboração humana: “Deus, que te criou sem ti, não te salvará sem ti”, dizia Santo Agostinho. Em inúmeras passagens do Evangelho, o céu e o inferno são tratados como o “prêmio” e o “castigo” eternos devidos a nossas obras boas ou más.

 

 

Não é verdade, portanto, que nos salvaremos por puro arbítrio divino, não importando o que fizermos ou deixarmos de fazer. Se o nosso nome estiver escrito no Livro da Vida, isso se deverá sem dúvida nenhuma à misericórdia divina, mas à misericórdia que nós livremente aceitamos dizendo “sim”, dia após dia, à vontade de Deus.

 

 

Nesta vida, porém, ninguém pode estar seguro da própria salvação. Escutemos a esse respeito o que ensinou o imortal Concílio de Trento, respondendo às angústias mal resolvidas dos autores da “Reforma” Protestante e advertindo-nos da necessidade de viver santamente:

 

 

Ninguém [...], enquanto vive nesta condição mortal, deve presumir do arcano mistério da predestinação divina a ponto de se julgar, seguramente, no número dos predestinados, como se fosse verdade que quem foi justificado ou não pode mais pecar ou, se pecar, deve contar com um seguro arrependimento. Pois não se pode saber a quem Deus escolheu para si, senão por uma especial revelação.

 

 

 

De modo semelhante deve-se dizer em relação ao dom da perseverança, do qual está escrito:

 

 

“Quem perseverar até o fim, será salvo” (Mt 10, 22) [...]. Ninguém, quanto a este dom, imagine alguma coisa com absoluta certeza, embora todos devam nutrir e guardar firmíssima esperança no auxílio de Deus. Pois, se não falharem quanto à sua graça, Deus, como começou a boa obra, assim também a levará a termo, operando o querer e o realizar (cf. Fl 2, 13).

 

Todavia, aqueles que crêem estar em pé cuidem de não cair (cf. 1Cor 10, 12) e realizem a própria salvação com temor e tremor (cf. Fl 2, 12), nas fadigas, nas vigílias, nas esmolas, nas orações e nas ofertas, nos jejuns e na castidade (cf. 2Cor 6, 5s). Sabendo que foram regenerados na esperança da glória (cf. 1Pd 1, 3), mas não ainda na glória, devem temer pela batalha que ainda resta contra a carne, contra o mundo, contra o diabo, da qual não podem sair vencedores, se não obedecerem, com a graça de Deus, às palavras do Apóstolo: “Somos devedores, mas não à carne, para vivermos segundo a carne; pois, se viveis segundo a carne, morrereis. Se, ao contrário, no Espírito fazeis morrer as obras da carne, vivereis” (Rm 8, 12) [2].

 

 

Agora estou em parafusos! Ninguém pode ter certeza da própria salvação? É possível, então, que uma pessoa cumpra a vontade de Deus ao longo de toda a vida e, no último instante, consentindo em um pecado mortal, seja condenada ao inferno? Como pensar nisso e não enlouquecer?

 

 

 

Tendo “firmíssima esperança no auxílio de Deus”, como diz o Concílio de Trento e como ensina este episódio da biografia de São Francisco de Sales:

 

 

Entre fins de 1586 e começos de 1587, quando ainda estudava em Paris, [Francisco] tomara contato com a tese teológica da predestinação, defendida pelos protestantes (em especial Calvino) e por alguns autores católicos, e muito discutida na universidade. Ao debruçar-se sobre esse problema, começara a duvidar da própria salvação — muito embora, tanto quanto é possível sabê-lo, nunca tenha cometido um único pecado mortal —, e passara uns bons dois meses acossado por uma tentação obsessiva de desespero que lhe ia roendo a paz de espírito e até a saúde física. Livrara-se dela num dia em que, ajoelhado diante de uma imagem de Nossa Senhora, fizera a única coisa possível a quem se encontra nessa situação: um ato heroico de abandono e de esperança em Deus. Declarou ao Senhor que estava disposto a amá-lo durante esta vida mesmo que o seu destino fosse a condenação eterna, e abandonou todas as dúvidas acerca da sua salvação na Misericórdia divina [3].

 

 

A exemplo de São Francisco de Sales, confiemo-nos à Virgem Maria, “esperança nossa”, sempre que nos ocorrer qualquer tentação, seja ao desespero, seja à presunção. E aprendamos a ter sempre em mente este ato de esperança:

 

 

“Eu espero, meu Deus, com firme confiança, que pelos merecimentos de meu Senhor Jesus Cristo, me dareis a salvação eterna e as graças necessárias para consegui-la, porque vós, sumamente bom e poderoso, o haveis prometido a quem observar fielmente os vossos mandamentos, como eu proponho fazer com o vosso auxílio”. Amém.

 

 

 

Referências

 

 

1.      Joseph Pole, “Predestination”. The Catholic Encyclopedia, v. 12. New York: Robert Appleton Company, 1911.

 

2.      Concílio de Trento, Decreto sobre a justificação, 6.ª sessão, 13 jan. 1547, cc. 12-13 (DH 1540-1541).

 

3.      Joseph Tissot, A arte de aproveitar as próprias faltas, trad. de Emérico da Gama. 3.ª ed., São Paulo: Quadrante, 2003, p. 10.   fonte  http://berakash.blogspot.com/