Leitura Bíblica: Marcos 3.7-35
“O caminho de Jesus estava intimamente ligado a obediência a vontade de Deus. Portanto, a própria experiência de rejeição de Jesus por sua família serve como modelo para um discipulado que pode muito bem custar a outros seus laços familiares.” – Robert Guelich
Nessa perícope, Marcos mais uma vez organiza suas histórias de modo muito perspicaz. Antes de seguir com a história de Jesus, Marcos oferece um resumo transicional entre o que ele acabou de contar e o que ele pretende apresentar (3:7-12). Nesse resumo, vemos novamente a multidão seguindo a Jesus em função de sua fama (vv.7-9) e a continuidade do ministério de Cristo (vv.10-12). O modo como Marcos escreve aqui nos lembra um pouco daquilo que ele já apresentou sobre o início do ministério de Cristo (1:21-45).
Isso fica ainda mais evidente quando Marcos apresenta o chamado dos discípulos (3:13-19) de modo muito parecido às outras vezes que vimos nosso Senhor convidar pessoas para o seguir (1:16-20; 2:13-14). Entretanto, Marcos volta nossos olhos para esses momentos, sem perder de vista o claro antagonismo que Jesus recebeu das autoridades religiosas na perícope anterior (2:1-3:6). O que nos chama a atenção aqui é a a extensão desse antagonismo contra Jesus, que agora, além das autoridades religiosas (vv.22-30), também inclui os próprios familiares de Jesus (vv.20-21; 31-35).
E ao retomar a esses temas, Marcos demonstra mais uma vez que a grande maioria das pessoas apresentadas nesse evangelho não estão seguindo a Jesus de verdade. Enquanto a multidão está atrás de Jesus para ganhar alguma coisa (1:28, 33; 45; 3:10), os familiares estão atrás de Jesus para prendê-lo (3:21) e as autoridades religiosas estão atrás dele para condená-lo (3:6; 22; 30). E diante desse fato, nós começamos a nos perguntar: Quem é que de fato está seguindo a Jesus nesse evangelho? E na perícope que lemos hoje Marcos nos oferece essa resposta de modo muito interessante.
A Multidão e os Discípulos
Em primeiro lugar, Marcos nos ensina sobre a diferença de fazer parte da multidão e ser um verdadeiro seguidor de Jesus. Ao apresentar a multidão nessa perícope (ὄχλος – ochlos, 3:9, 20, 32; πλῆθος – plēthos, 3:7-8), Marcos usa termos similares para descrever pessoas indo atrás de Jesus (cf. 3:7, 8, 9, 20) e verdadeiros seguidores (3:32). Além disso, é bem possível que Marcos tenha usado o mesmíssimo verbo para descrever os discípulos que seguem a Jesus (ἀκολουθέω, akoloutheō; 1:18; 2:14, 15) para descrever a multidão que vai ate Ele (cf. variante textual, 3:7). Isso não significa, contudo, que Marcos não nos ensine a perceber a diferença entre eles.
Antes de mais nada, a multidão segue de Jesus por razões equivocadas (3:7-10). A multidão quer algo de Cristo e o procura porque tinha ouvido “a respeito de tudo o que Ele estava fazendo” (3:8). O modo como Jesus apresenta sua autoridade sobre o mundo sobrenatural e sobre as doenças (1:27; cf 1:24, 41-42) chama atenção das pessoas a ponto de multidões (cf. 1:32-34; 45) O procurarem para serem abençoadas por Ele. A fama de Jesus se espalhava, mas não baseado no que ele ensinava, muito menos na declaração de missão de Jesus. A bem da verdade, eram suas curas e exorcismos que o tornavam famoso, e por isso as pessoas se apertavam só para encostar nele e dele receber o que queriam: “Pois Ele havia curado a muitos, de modo que todos os que sofriam de doenças ficavam se empurrando para conseguir tocar nele” (3:10). Eles não queriam a Jesus, nem ouvir o que ele tinha a ensinar. Eles queriam usar a Jesus.
Além disso, essa multidão é apresentada com indo até Ele sem que a mesma tenha sido convidada. A expressão usada por Marcos para descrever a atitude da multidão de ir até Jesus (ἦλθον πρὸς αὐτόν – ēlthon pros auton; 3:8) é usada em outros lugares no evangelho de modo negativo (1:45; 3:13). Até aqui, em nenhum momento Jesus convidou essa multidão para estar com Ele (cf. 8:34). Ao contrário, sempre que pode Jesus solicitou silêncio das pessoas que recebiam dele algum benefício (1:43-44) ou quando estava diante de demônios que O conheciam muito bem (3:12; cf. 1:34). A impressão que temos é que Jesus não queria que sua fama se espalhasse pelos motivos errados, porque Ele sabia que isso atrairia pessoas pelos motivos errados. E foi exatamente isso que aconteceu: a fama sobre o que Jesus fazia era o que atraia pessoas.
Em outras palavras, a motivação da multidão em ir até Jesus tem pouco a ver com quem Ele era. A bem da verdade, para multidão faz pouquíssima diferença quem ele é, o que realmente importa é o que Ele estava fazendo. Ele era um milagreiro famoso e isso era suficiente para a multidão. A multidão não quer a Cristo, ela quer algo Dele. Eles não querem estar com Cristo, eles querem usar a Cristo. Além disso, a multidão não vai até Jesus por causa do seu ensino (cf. 1:21-22; 32-34; 45; 3:10), a multidão vai até Ele em busca de seus próprios interesses.
Aliás, essa multidão é apresentada por Marcos com uma sutil nota de desgosto. Ao descrever a multidão se aproximando de Jesus, nosso autor usa um jogo de palavras muito interessante: Enquanto a multidão jogava-se sobre Jesus (ἐπιπίπτω – epipiptō; 3:9) os demônios jogavam-se diante dele (προσπίπτω – prospiptō; 3:11). Ainda que a atitude dos espíritos imundos seja completamente desprovida de adoração, ela pelo menos era marcada pelo reconhecimento da autoridade de quem Jesus Cristo realmente é. Agora, a atitude da multidão é realmente desprezível: não apenas era uma ação desprovida de adoração, era uma ação desprovida de respeito e reconhecimento da autoridade de quem Jesus realmente era. Em outras palavras, a multidão portava-se pior que os demônios.
Distintos da multidão, os verdadeiros seguidores de Cristo são chamados por Ele: “Jesus subiu a um monte e chamou a si aqueles que Ele quis” (3:13a). O verbo escolhido por Marcos para descrever a ação de Cristo é frequentemente usada no evangelho para descrever o ato de Jesus chamar para si os seus discípulos, seja para ensiná-los (8:1; 10:42; 12:43), seja para enviá-los a pregar (6:7). Ao que parece, esse é o modo pelo qual Marcos descreve a iniciativa de Jesus em escolher para si mesmo pessoas que Ele quer por perto. Aliás, quando a multidão o pressionava, era para os discípulos que ele pedia ajuda: “Por causa da multidão, Ele pediu aos discípulos que lhe preparassem um pequeno barco, para evitar que o comprimissem” (3:9). Enquanto a multidão queria algo de Jesus, Ele queria estar com seus discípulos.
Outro detalhe que diferencia o verdadeiro discípulo da multidão é que os discípulos respondem de modo obediente ao chamado de Cristo: “os quais vieram para junto dele” (3:13b). Enquanto a multidão vai até Ele (ἦλθον πρὸς αὐτόν – ēlthon pros auton; 3:8; cf. 1:45; 2:13) por motivos pessoais, os discípulos fazem o mesmo (cf. ἀπῆλθον πρὸς αὐτόν, apēlthon pros auton, 3:13c) em obediência ao convite do Mestre. E isso faz toda a diferença. Embora Marcos não nos informe a razão para tal obediência, nem o motivo pelo qual eles largaram tudo para traz (1:18, 20b; 2:14b), ele é claro em demonstrar que os discípulos responderam de modo obediente ao convite de Cristo (1:17; 20a; 2:14a). Eles queriam estar com Cristo.
Os verdadeiros seguidores de Cristo são claramente convidados para estar com Cristo: “Jesus escolheu doze homens para estar com Ele” (3:14a). Para os verdadeiros discípulos Jesus Cristo oferece sua presença e não seus milagres. Não que Ele não possa graciosamente realizar milagres que os beneficie (1:29-13), mas que Sua proposta para eles é outra. Ele não quer oferecer apenas Seu poder, Ele quer dar-se a conhecer durante sua jornada a Jerusalém.
Além disso, os verdadeiros seguidores são comissionados por Cristo para perpetuar o ministério iniciado ele: “Jesus escolheu doze homens para estar com Ele e para os enviar a pregar e exercer autoridade sobre demônios” (3:14b-15). Jesus os aproxima de Si com a intenção de prepara-los para os enviar para pregar o evangelho. É por isso que ele modela esse ministério para os discípulos, e assim os treina. Oportunamente seus discípulos serão enviados por Ele para realizar o ministério sem Ele (cf. 6:7-13), e serão conhecidos como os apóstolos de Cristo, isto é, aqueles que foram enviados por Ele (variante textual 3:14; 6:30; cf. 1 Pe 1:1; 2Pe 1:1; Jd 1:17).
Oposição e Afirmação
O segundo modo pelo qual Marcos nos ensina sobre o verdadeiro discípulo está no contraste entre a crença da oposição e aquilo que se espera que um discípulo creia. A bem da verdade, essa distinção é muito sutil no texto, como costuma acontecer no evangelho de Marcos. Mas, ao observar as três afirmações sobre quem Cristo é pronunciada pelos opositores de Jesus nesse texto, nós percebemos o que o autor quer nos ensinar sobre nossa confissão de fé em relação a Cristo.
Os parentes de Jesus, vendo-o trabalhar incansavelmente, a ponto de não conseguirem se quer parar para comer (3:20), saíram ao encontro de Jesus para detê-lo: “Quando seus familiares ouviram falar disso, saíram para prendê-lo” (3:21a). A perspectiva que eles tinham de Jesus certamente não era nada positiva: “Ele está fora de si!” Para seus parentes, Jesus era um lunático!
Os escribas pensavam diferente. Como eram testemunhas oculares dos exorcismos de Cristo, eles não poderiam negar que os mesmos não tinham acontecido. Entretanto, eles tinham uma explicação razoável: Para eles os poderes miraculosos que operam em Jesus tinham sua fonte em Satanás: “Ele está possuído com Belzebu! Pelo príncipe dos demônios é que Ele expulsa demônios” (3:22; cf. 3:30). Ou seja, enquanto os parentes o viam como um lunático, as autoridades o viam como um endemoninhado.
Surpreendente, entretanto, é que em todas as afirmações feitas pela oposição de Cristo, somente os demônios estavam corretos: “Tu és o Filho de Deus” (3:11). Essa definição nos é apresentada no início do evangelho (1:1) e só é apresentada por um humano no final após a morte de Jesus (15:39). Ao que parece, durante todo o evangelho são apenas os demônios que o chamam por esse título (cf. 5:7). Para os demônios, Jesus era o Filho de Deus.
Esse é mais um sutil paralelo que Marcos apresenta em seu evangelho. E aqui percebemos que os opositores humanos eram também piores que os demônios: enquanto familiares e escribas o acusavam equivocadamente sem saber quem Ele realmente era, os demônios pelo menos estavam certos (3:12). Ainda assim, independente de qualquer veracidade na afirmação dos demônios, Marcos nos ensina aqui que seguir a Cristo, além de uma disposição de obediência, é fundamental que o discípulo saiba e creia em quem Jesus realmente é. Isso fica muito claro pelo fato que o autor inicia e termina o seu Evangelho defendendo a filiação divina de Cristo (cf. 1:1; 15:39). E é exatamente isso o que o nosso autor nos ensina aos poucos: a medida que contas as estórias de Jesus, ele nos ensina sobre quem Ele realmente é.
Embora até o momento Marcos não tenha nos contado o que exatamente pensavam os discípulos a respeito de Jesus, pela firme decisão deles em largar tudo para seguir a Cristo, nós entendemos que eles discordavam tanto dos familiares como das autoridades religiosas. Ou seja, o verdadeiro discípulo a segue a Jesus por quem Ele é, e não por aquilo que gostaria que Ele fosse.
Os Familiares e a Família
Por fim, Marcos nos ensina sobre seguir a Cristo ao diferenciar os familiares de Jesus de sua verdadeira família. Dentre os familiares (cf. 3:21), Marcos nos conta sobre a mãe e os irmãos de Jesus, pessoas que estavam do lado de fora da casa onde Jesus estava (3:31a). De modo quasi irônioco, do lado de fora eles mandam chamar a Jesus de um modo muito parecido com o modo que Jesus chama seus discípulos (3:31b, καλέω; kaleō; 3:14, προσκαλέω; proskaleō). Ainda que os familiares de Jesus pudessem ser pessoas naturalmente parte da família de Jesus, Marcos nos demonstra que existe uma grande diferença entre aqueles que estão do lado de fora e aqueles que estão com Ele do lado de dentro.
Em primeiro lugar, os que estão dentro estão com Cristo: “Havia uma multidão assentada ao seu redor” (3:32). Essa multidão estava em volta de Cristo, em termos similares aos discípulos que foram chamados para estar com Jesus (3:14). Eles são descritos como multidão, mas eles pertencem aos seguidores de Cristo. Aliás, olhado para essas pessoas ele define quem é sua verdadeira família: “Quem é minha mãe, e quem são meus irmãos?”, perguntou Ele. Então olhou para os que estavam assentados ao seu redor e disse: Aqui estão minha mãe e meus irmãos! Quem faz a vontade de Deus, este é meu irmão, minha irmã e minha mãe.”
A diferença entre os familiares e a Família de Cristo era muito simples: era uma questão de obediência. E aqui vemos Marcos apontar para algo que ele nos ensinou em toda essa perícope. Seguir a Jesus é uma questão de obediência. Para fazer parte da Família de Jesus, seus seguidores devem estar dispostos a obedecer a Deus. E existe algo grandioso acontecendo aqui, afinal, a multidão tão depreciada no início dessa perícope é convidada por Cristo a viver uma vida de obediência. O convite para o caminho do discipulado com Cristo não era restrito aos doze homens, incluía um convite a todos, homens e mulheres dispostos a viver uma vida de obediência a Deus (cf. 8:34).
Em outras palavras, de modo muito claro Marcos nos ensina a diferença entre fazer parte da multidão, ser um opositor ou ser um seguidor de Cristo. E para aqueles que tem dúvidas sobre onde se encontram nesse dilema, Marcos nos oferece duas perguntas importantes: “Você vai até Jesus em busca de benefícios ou você foi convidado para estar com Ele?”. A resposta a essa pergunta faz toda diferença, afinal verdadeiros discípulos são chamados para estar com Cristo e não o buscam por interesses pessoais.
Mas, se ainda assim a dúvida persistir, Marcos nos oferece uma segunda pergunta: “Quem é Jesus pra você?” Se sua resposta é que Jesus é um meio para um fim desejado, talvez você ainda pertença à multidão. Se ele é um lunático ou um endemoninhado, então você pertença à categoria de opositores. Por outro lado, se Jesus é de fato Filho de Deus e você o busca por quem ele realmente é, então você pertence ao grupo dos discípulos de Cristo, que o seguem porque foram convidados para estar com Ele e para serem enviados a pregar o evangelho.